"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta.
[…]
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não discriminando já o bem do mal, sem palavra, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados (?) na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas(1), capazes de toda a veniaga(2) e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provêm que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro.
Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do país, […]
A Justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara a ponto de fazer dela um saca-rolhas.
Dois partidos […], sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, na hora do desastre, de sacrificar […] ou meia libra ou uma gota de sangue, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se amalgamando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar.
Um partido […], avolumando ou diminuindo segundo os erros […], hoje aparentemente forte e numeroso, àmanhã exaurido e letárgico, água de pôça inerte, transbordando se há chuva, tumultuando se há vento, furiosa um instante, imóvel em seguida, e evaporada logo, em lhe batendo dois dias a fio o sol ardente; um partido composto sobretudo de pequenos burgueses […] adstritos ao sedentarismo crónico do metro e da balança, gente de balcão, não de barricada, com um estado maior pacífico e desconexo de vélhos doutrinários, moços positivistas, românticos, jacobinos e declamadores, homens de boa-fé, alguns de valia mas nenhum a valer.
Um partido, enfim, de índole estreita, acanhadamente político-eleitoral, mais negativo que afirmativo, mais de demolição que de reconstrução, faltando-lhe um chefe de autoridade abrupta, uma dessas cabeças firmes e superiores, olhos para alumiar e boca para mandar, um desses homens predestinados, que são em crises históricas o ponto de intercepção de milhões de almas e vontades, acumuladores eléctricos da vitalidade duma raça, cérebros omnímodos(3), compreendendo tudo, adivinhando tudo, […], simultaneamente humanos e patriotas, do globo e da rua, […] que levam um povo de abalada, como quem leva ao colo uma criança.
Educação miserável, marinha mercante nula, indústria infantil, agricultura rudimentar.
[…]
Liberdade absoluta, neutralizada por uma desigualdade revoltante, o direito garantido virtualmente na lei, posto, de facto, à mercê dum compadrio de batoteiros, sendo vedado, ainda aos mais orgulhosos e mais fortes, abrir caminho nesta porcaria, sem recorrer à influência tirânica e degradante de qualquer dos bandos partidários.
[…]
E se a isto juntarmos um pessimismo canceroso e corrosivo, minando as almas, cristalizado já em fórmulas banais e populares, tão bons são uns como os outros, corja de pantomineiros, cambada de ladrões, tudo uma choldra, etc., etc., teremos em sintético esboço a fisionomia da nacionalidade portuguesa […].
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A burguesia liberal, […], parasitagem burocrática, […], advogalhada de S. Bento, […], estradas, […], estações, inaugurações, locomotivas (religião do Progresso, como eles diziam), todo esse mundo de vista baixa, moralmente ordinário e intelectualmente reles, ia agora liquidar numa infecta débâcle de casa de penhores, num Alcácer-Quibir esfarrapado, de feira da ladra.
[…]
A crise não era simplesmente económica, política ou financeira. Muito mais: nacional. […]. Perigava a existência, a autonomia da pátria.
[…]
O português, apático e fatalista, ajusta-se pela maleabilidade da indolência a qualquer estado ou condição. Capaz de heroísmo, capaz de cobardia, toiro ou burro, leão ou porco, segundo o governante.
[…]
Se o Nazareno, entre ladrões, fosse hoje crucificado em Portugal, ao terceiro dia, em vez do Justo, ressuscitariam os bandidos. Ao terceiro dia? Que digo eu! Em 24 horas andavam na rua, [...]. "
Excerto das anotações finais do livro "Pàtria" de Guerra Junqueiro, 1896.
(1) Sevandijas – Parasitas, vermes imundos;
(2) Veniaga – Tramóia, negociata;
(3) Omnímodo – De todos os géneros ou modos, ilimitado
Deste texto, foram retiradas algumas partes com o objectivo de descontextualiza-lo temporalmente e com o intuito de demostrar a miserável actualidade de um texto com mais de 100 anos, mas que contudo, parece ter sido escrito ontém.
Infelizmente, fica bem patente que o problema de Portugal são os portugueses e a forma como se comportam intemporalmente. Por muito boa que seja a sua gente, não há país que resista a tanta letargia do povo e a tanta incompetência (para lhe chamar apenas isso) de quem o governa.
Não estamos condenados a condição inferior, mas temos que mudar muito para alcançarmos outros patamares. E quando falo de mudança, faço-o para mim próprio e para os outros 10 milhões de portugueses, não me refiro apenas à política. É um desígnio nacional e apartidário.